quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Coco Chanel & Igor Stravinsky

Tatiana Babadobulos

Coco Chanel & Igor Stravinsky. França, 2009. Direção: Jan Kounen. Roteiro: Jan Kounen, Chris Greenhalgh e Carlo De Boutiny . Com: Anna Mouglalis e Mads Mikkelsen. 120 min.

Os fashionistas estão cansados de saber quem foi Coco Chanel. Ain­da que suas contribuições não tenham sido apenas na moda, mas também no comportamento das mulheres, muitos ignoram o papel importante que ela teve. Nascida Ga­brielle Chanel, ela passou poucas e boas na infância até alcançar o to­po do sucesso na França e depois no mundo todo.

Após “Coco Antes de Cha­nel”, filme protagonizado por Audrey Tautou e que contou a história da esti­lista desde o seu nascimento até os primeiros desfiles, agora estreia “Coco Chanel & Igor Stravinsky”, longa-metragem baseado no romance “Coco & Igor”, de Chris Greenhalgh, que também é roteirista da fita, ao lado de Carlo De Boutiny e do diretor Jan Kounen (de “99 Francs”).

Ao contrário do primeiro filme, este não tem a preocupação de contar de forma linear os passos da estilista (e do seu sofrimento após per­der Arthur ‘Boy’ Capel), mas sim de mostrar o seu envolvimento com o maestro russo Igor Stravinsky (aqui vivido pelo dinamarquês Mads Mikkelsen, de “007 - Cassino Royale”).

A atriz responsável por dar a voz e (principalmente) a forma a Chanel é a francesa Anna Mouglalis, que também é modelo da grife.

Na Paris de 1913, a bela vai ao Théâtre des Champs-Élysées acompanhar a apresentação de Stravinsky. Embora ela tenha amado, o público vaia. Tal como ela e sua moda, a mú­sica é moderna, a frente de seu tempo. Os dois, no entanto, só vão se reen­contrar em 1920, quando ela já se consolidou, se tor­nou rica e fa­mosa e está desolada após a morte de ‘Boy’. Já o russo está vivendo em exílio na França após a revolução russa. É a partir deste encontro que ela se oferece a ajudá-lo para que ele e a família possam ter uma vida tranquila enquanto cria.

Paralelamente ao caso extra-conjugal, o espectador pode acompanhar o desenvolvimento nas cria­ções das músicas e das coleções de Chanel. E também como foi desenvolvida a fragrância do perfume que conquistou Marilyn Monroe e é o mais vendido do mundo todo.

Com figurino impecável, elegante, simples mas muito chique (produzido pela própria grife), “Coco Chanel & Igor Stravinsky” mos­tra também a preferência da estilista pelas cores preta, branca e cinza, os chapéus, os tailleurs. Falado em inglês, francês e russo, o longa emociona com a história de sucesso dos dois artistas.

Diferentemente de “Piaf – Hino ao Amor”, biografia da cantora francesa Edith Piaf que mostra sua vida repleta de dificuldades no início e até chegar o sucesso, assim como “Coco Antes de Chanel” e “Ray”, o filme Jan Kounen se preo­cupa em mostrar bom humor, fra­ses prontas (“Você não me conhece; podemos aprimorar isso”; “Eu sou mais poderosa que você, Igor, mas faço mais sucesso”) e emocionar o espectador.

Julgamentos de conduta e fide­li­dade à parte, a his­tória de amor e paixão é arrebatadora e mostra a influência de cada um no trabalho de ambos. No mínimo, mais paixão na música do maestro e mais sensualidade nas criações de Chanel. Ao espectador, o resultado positivo de um roteiro envolvente com direção bem feita. É só aproveitar.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

REFLEXÕES DE UM LIQUIDIFICADOR




Antonio Carlos Egypto


REFLEXÕES DE UM LIQUIDIFICADOR. Brasil, 2010. Direção: André Klotzel. Com Ana Lúcia Torre, Aramis Andrade, Selton Mello. 84 min.


Do diretor brasileiro André Klotzel me vêm à mente dois filmes, que achei muito bons. A “Marvada Carne”, de 1985, primeiro filme dele, era um mergulho divertido, ao mesmo tempo respeitoso e irônico, na vida caipira. Fernanda Torres brilha em momentos hilários do filme, onde ela contracena com a imagem de Santo Antonio, que não há meio de lhe arrumar casamento. Dionísio Azevedo personificava a alienação do matuto, que nunca sabia de nada, e por aí vai.

Muitos anos depois, já em 2002, o diretor lança “Memórias Póstumas”, com base na obra de Machado de Assis, e se sai muito bem, trazendo algumas cenas visualmente originais, levando o filme com leveza, enfatizando o humor do texto e obtendo ótimas interpretações.

Eis que agora André Klotzel nos apresenta “Reflexões de um Liquidificador”. O título já é completamente estranho. Mas o que o filme nos oferece é isso mesmo: o liquidificador virou personagem, melhor dizendo, protagonista de uma história, como sempre, bem humorada e cheia de ironia. Mas que tem, também, outros ingredientes, como ciúme, traição, crime e investigação. E, acreditem, o liquidificador participa ativamente de tudo isso.

O liquidificador fala, na voz de Selton Mello, e, como mói, pensa. Já vimos muito bicho falar e agir, plantas e árvores, e por que não alguns objetos? Mas liquidificador, uma máquina tão prosaica, restrita à cozinha, é uma ousadia, não é? E fazê-lo participar de tudo o que acontece – e que não é pouca coisa – exige uma trama bem montada e criativa. O resultado é ótimo. A gente se surpreende, se diverte e desfruta do ótimo desempenho de Ana Lúcia Torre e da interpretação vocal muito apropriada e irônica de Selton Mello. Sem dúvida vale uma ida ao cinema.

Cabe lembrar que o filme está sendo exibido, na cidade de São Paulo, em uma única sala: o espaço Unibanco Augusta, acompanhado de um curta-metragem, que varia conforme o horário da sessão, assim como os preços. Nos horários noturnos, a sessão é acompanhada de dez minutos de “stand-up comedy”, ao vivo. O lançamento garante um tempo de permanência em cartaz, para que o filme possa ser conhecido antes de sair meteoricamente do cinema, como acontece com muitos filmes mais elaborados ou menos comerciais, entre eles os brasileiros.

Para um filme original, como “Reflexões de um Liquidificador”, nada mais justo do que uma estratégia original de lançamento. Vida longa ao velho e simpático liquidificador, que André Klotzel colocou em primeiro plano no nosso cinema.

sábado, 21 de agosto de 2010

UM DOCE OLHAR


Antonio Carlos Egypto


UM DOCE OLHAR (Bal). Turquia, Alemanha, 2010. Direção: Semih Kaplanoglu. Com Bora Atlas, Erdal Besikçioglu, Tülin Özen, Alev Ulçarer. 103 min.

“Um doce olhar” é um filme que, antes de mais nada, conquista por sua plasticidade, por sua beleza. As locações na natureza são espetaculares. Tudo se passa entre montanhas e florestas, onde vivem os personagens: o garoto Yusuf (Bora Atlas) e sua família.

Yusuf tenta aprender a ler e a escrever na escolinha rural, com um professor paciente, que se revela um bom educador, incentivador da busca desse conhecimento. O garoto se empenha para alcançar o reconhecimento do mestre e se equiparar aos alunos mais desenvolvidos. Mas o filme mostra que isso não é tão fácil: exige esforço e dedicação. Vivemos essa e as outras experiências do garoto Yusuf, incluindo os mistérios daquela floresta e da vida.

O pai do garoto é seu guia por esse mundo misterioso, identificando árvores, plantas e animais, o que constrói uma aprendizagem tão significativa quanto a que Yusuf tem na escola. E mais: esse pai é capaz de dar muito afeto e ser acolhedor em sua simplicidade de apicultor, habituado a escalar árvores para atrair abelhas e colher mel. A mãe cuida do menino e da casa sem demonstrar qualquer ansiedade com isso e é igualmente acolhedora.

Conhecer esse mundo e as rotinas relacionadas a ele é o que se vê no filme, quase todo o tempo, pelos olhos do menino. Até que a harmonia do ser humano com a natureza praticamente intocada se rompe, impondo uma perda e novos desafios ao nosso pequeno personagem.

Enquanto essas coisas vão acontecendo, podemos nos extasiar com belíssimos planos, enquadramentos perfeitos, ângulos inusitados e a beleza estonteante daquele lugar. O som é outro espetáculo à parte, marcando a natureza e as ações humanas, revelando a cada passo a importância de cada movimento, de cada gesto, por mais simples que seja.

É assim que o espectador aprecia o voo de um pássaro, a quebra de um galho de árvore, a água da cachoeira, os passos sobre as folhas caídas no chão. As falas são escassas, as imagens falam por si. Tedioso? Não, cinema puro e da melhor qualidade. Para ser apreciado na tela grande e com som de cinema. Na TV, ainda que nesses modernos telões de LCD, plasma ou LED, vai perder muito do seu impacto. Até porque não é filme que se deva interromper, ou conversar durante a projeção, sob pena de não se usufruir do que ele tem de melhor. Por sinal, todos os bons filmes exigem atenção concentrada, sem interrupções. Mas quando a história é apenas um fio e o mais importante é o clima, a plasticidade e o som que se experienciam, isso é ainda mais evidente.

“Um doce olhar” levou o Urso de Ouro no Festival de Berlim de 2010 e não foi à toa. É um belo filme.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

CABEÇA A PRÊMIO


Antonio Carlos Egypto

CABEÇA A PRÊMIO. Brasil, 2008. Direção: Marco Ricca. Roteiro: Marco Ricca e Felipe Braga. Com Fúlvio Stefanini, Alice Braga, Cássio Gabus Mendes, Eduardo Moscovis, Ana Braga, Otávio Muller e os atores uruguaios Daniel Hendler e Cesar Troncoso. 104 min.

O filme começa mostrando um avião que pousa e o encontro de dois personagens falando espanhol. Aparecem as legendas. Seu papo é amistoso, mas misterioso. Estamos na fronteira? Algo ilícito está subjacente? Não há indicações precisas de nada, onde estamos, em que época, e quem são esses personagens. Um pilota um pequeno avião, mas a que se dedicam?

Fugindo ao esquema clássico, muitos outros personagens e situações aparecerão, mas nada será explicado. Aos poucos, algumas coisas vão se encaixando, a familiaridade de algumas cenas nos faz intuir do que se trata, quem manda e como se resolvem certas coisas. Mas nada jamais será explicado, ou esclarecido. A maioria dos personagens em cena está como nós, sem ter todas as informações de que precisa. No meio de uma trama, que percebemos perigosa, e meio às cegas.

“Cabeça a prêmio” nos deixa em suspense todo o tempo: não sabemos muito bem o que esperar, nada é muito previsível. Sempre restará uma dúvida. E isso vale literalmente até a última cena do filme. Os créditos sobem e a gente percebe que acompanhou uma história, e se envolveu com ela, sem nunca dispor das informações que a revelam. E não precisava mesmo.

Mas como é isso? A rigor, a gente não sabe o que está acontecendo direito, mas entende o que se passa e o drama de cada personagem? É mais ou menos isso. No filme, como na vida, ninguém controla todas as variáveis de nada. Muitas das decisões têm de ser tomadas com poucos dados. Como um personagem que pergunta ao outro: “o que você quer?” e nem por isso obtém uma resposta convincente. Quando a ação finalmente explica algo, não está tudo lá. Alguma coisa continua faltando. E continuará faltando sempre.

Não há o narrador onisciente, que amarra tudo, explica tudo e até poderia dar a “moral” da história. Nada disso. Em princípio, tudo está em aberto, passível de diferentes interpretações, embora haja um fio condutor que não se perde.

Como espectador, a experiência foi ótima. Suspeito de que pessoas que gostam de ter controle sobre as coisas não vão suportar ficar suspensas na trama, pescando as coisas aos poucos. Quem é o que de quem? Que relações eles têm entre si? Que negócio é esse e por que ele está ameaçado? Aonde quer chegar este ou aquele? E por que esse comportamento, agora?

Quem puder controlar e administrar sua ansiedade durante a projeção, vai apreciar “Cabeça a prêmio”, o trabalho de estreia na direção do ator Marco Ricca, de larga experiência no cinema e na TV, além do teatro.

Foi um excelente começo o de Ricca, dirigindo e roteirizando livro de Marçal de Aquino e podendo contar com uma plêiade de atores e atrizes invejável. Ótimos desempenhos, numa trama habilmente construída, fazem de “Cabeça a prêmio” um filme inteligente, muito bom de se ver.

ANTES QUE O MUNDO ACABE


Antonio Carlos Egypto


ANTES QUE O MUNDO ACABE. Brasil, 2009. Direção: Ana Luiza Azevedo. Com Pedro Tergolina, Eduardo Cardoso, Caroline Guedes, Eduardo Moreira, Janaína Kremer e Bianca Menti. 102 min.

Estreia deste fim de semana em São Paulo, "Antes que o mundo acabe" é um ótimo filme para adolescentes, pais e educadores. Para ler a crítica, que já foi postada aqui há algum tempo, clique ao lado, em maio de 2010, e a encontrará entre as postagens daquele mês.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Os Mercenários

Tatiana Babadobulos

Os Mercenários (The Expendables). Estados Unidos, 2010. Direção e roteiro: Sylvester Stallone. Com: Sylvester Stallone, Jason Statham, Jet Li, Giselle Itié, Mickey Rourke. 103 min.

Difícil dizer se é uma qualidade ou um defeito. No entanto, “Os Mercenários” (“The Expendables”), longa-metragem que estreia nesta sexta-feira, 13, no Brasil e nos Estados Unidos, é escrito, dirigido e estrelado por Sylvester Stallone.

O astro, como se sabe, é especialista em filmes de ação rechea­dos de lutas nos quais ele faz o papel de bom moço que apanha sem parar, mas no final dá a volta por cima, em uma perfeita catarse. Em “Os Mercenários”, portanto, não é diferente. A fita conta a história de um grupo que tem a missão de combater um ditador na América Latina. Para tanto, eles vão se juntar e, liderados por Barney Ross (Stallone), seguir para o local.

No grupo, nada mais caricato: o chinês (Jet Li) especialista em artes marciais; o motoqueiro encrenqueiro (Jason Statham) que tenta reatar com a ex-namorada; Mr. Church (Bruce Willis), que contrata a gang; Tool (Mickey Rourke), o tatuador que largou a vida de Mercenário para começar uma nova.

No tal país onde vive o ditador (na verdade, o Brasil), a atriz mexicana Giselle Itié (e que veio para o Brasil ainda pequena) faz o papel da filha do general e será raptada, torturada até ser salva pelos Merce­nários.

No elenco, reunião dos especia­listas em filmes do gênero, incluindo Arnold Schwarzenegger, que fez, entre outros, “O Exterminador do Futuro”. Atualmente, ele é governa­dor do estado da Califórnia – e esse, aliás, é o tema de uma das pia­das da fita. Para completar, só faltou Jean-Claude Van Damme (de “Soldado Universal”), que chegou a ser convidado, mas recusou a participação.

“Os Mercenários” reúne ação, lutas, sangue, efeitos especiais e atores especialistas no gênero. O espectador, portanto, não pode ir ao cinema para assistir a um filme de Stallone e achar que a obra vai mudar os conceitos do cinema, trazer inovações etc. Vencedor do Oscar de Melhor Filme e Melhor Diretor por “Rocky”, em 1976 (uma das maiores injustiças cometidas pela Academia), Stallone não convence. Ainda parece não ter aprendido a atu­ar, continua se movimentando como um robô. Como diretor, em muitas cenas é como se ele se esquecesse da função, deixando a pessoa que está falando fora de quadro (sem um motivo justificável). E a atuação de Giselle Itié também deixa a desejar, principalmente durante os seus diálogos com Stallone, com ento­nações fora de ritmo. Destaque, porém, para as atuações de Mickey Rourke, que está bem à vontade.

O longa estreia após o polêmico depoimento de Stallone durante a Comic-Con, em San Diego (Estados Unidos). Isso porque, ao falar sobre as filmagens no Brasil, ele teria feito uma piada preconceituosa. “Você pode explodir o país inteiro e eles ainda dizem: Obrigado! Aqui está um macaco para você levar de volta para sua casa”, disse. No dia seguinte, viu a repercussão desastrosa e pediu desculpas: “Peço desculpas sinceras ao povo do Brasil e a sua 'film commission'. Todas as minhas experiências no país foram fantásticas e disse a todos os meus amigos para filmarem lá. Ontem, eu estava tentando fazer um pouco de humor e não caiu bem. Tenho res­peito pelo grande país que é o Brasil. Novamente, peço desculpas.”

É provável que o filme agrade principalmente o público masculino, aquele que procura cenas de ação, explosões, sangue (muitas vezes desnecessário, como os braços decepados) e mulher bonita. O roteiro, embora o tema não seja lá grande coisa, tem bom-humor e agrada, principalmente as tiradas de sarro que misturam a ficção e a rea­lidade, tal como na participação de Schwarzenegger e quando falam que ele gostaria de ser presidente.

As filmagens no Brasil foram feitas no Rio de Janeiro durante três semanas, em abril do ano passado. Em conjunto com a sua produtora, a responsável no Brasil foi a O2 Filmes.

sábado, 7 de agosto de 2010

O ESTRANHO EM MIM


Antonio Carlos Egypto

O ESTRANHO EM MIM (Das Fremde in Mir). Alemanha, 2008. Direção: Emily Atef. Com Susanne Wolff, Johann von Buelow, Maren Kroymann, Hans Diehl e Judith Engel. 99 min.

Seguramente, é preciso coragem para tratar de um tema como depressão pós-parto no cinema. Mais palatável seria a discussão por meio de médicos e psicólogos habituados a uma linguagem técnica e dando orientações pela TV, por revistas ou Internet.

Transpor o assunto para uma obra de ficção na literatura, no teatro ou no cinema implica enfrentar alguns tabus. Primeiro: o tabu da maternidade, tão valorizado na nossa sociedade. Basta dizer que o Dia das Mães é a comemoração que mais lucro dá ao comércio, ao lado do Natal. Segundo: apresentar o sentimento de rejeição que se dirige ao bebê recém-nascido por aquela que o pariu. Assustador, sem dúvida. Terceiro: encarar o fato de que a maternidade não é a realização de todas as mulheres e, principalmente, que ser mãe não é algo “natural” da ordem da biologia, mas algo também aprendido, da ordem da cultura. Em tempos de busca desenfreada de respostas genéticas para tudo ou quase tudo, soa estranho. Quarto: na ficção é a emoção que conta. E o que uma mulher com depressão pós-parto mostra é o contrário do que se espera encontrar. Não se trata só da rejeição ao filho, mas também da culpa vivida pela própria mãe e seu sentimento de autodestruição.

São temas pesados, que nada têm a ver com um cinema de entretenimento ou diversão. É, portanto, difícil de fazer, já que não é comercialmente rentável. Além disso, é fácil ir para o lado piegas, moralista, e terminar no final feliz e redentor, que acabaria por negar toda a complexidade do assunto. Pois a diretora alemã, Emily Atef, conseguiu lidar muito bem com tudo isso, apenas no segundo longa metragem de sua carreira, e fez um belo filme, que será uma referência para a discussão da depressão pós-parto, daqui por diante.

Ao contar a história de Rebecca, jovem de 32 anos, e seu marido Julian, de 34, que se dão muito bem e esperam a chegada de seu primeiro filho, o que se imagina, quando do parto de um menino saudável, é a coroação dessa felicidade. Mas é o oposto disso o que ocorre, quando se manifesta a reação de estranheza da mãe por seu bebê e se percebe o sofrimento dela.

Por meio do filme, vamos conhecendo a vivência dessa mulher acuada, com medo e culpa, com a pulsão de morte buscando ocupar o lugar da vida, convivendo com seus próprios impulsos agressivos ou suicidas. Tudo isso mostrado com sutileza, de forma contida, o que acentua a força do problema.

Quando tudo vira do avesso, a família se desintegra e a mãe pode ser vista como ameaça à criança. A gente entende o que a personagem sente, inclusive sua ambiguidade, mas os demais personagens da trama têm dificuldade de entender e sofrem com isso, ao mesmo tempo em que discriminam a vítima, que parece algoz também.

Mas há os inúmeros recursos dos profissionais de saúde, terapeutas de diversos enfoques, que poderão ajudá-la. O acesso a eles numa hora dessas é fundamental, assim como a mãe da mãe, que vem de longe para tentar entender, acolher e ajudar.

O tratamento é longo, difícil e penoso, às vezes. “O estranho em mim” nos mostra esse processo com esperança, mas com honestidade. Sem escamotear as dificuldades e sem glamourizar a sua gradual superação, sendo didático, até. O que é muito bom, já que uma das formas de superar tabus é se informar, conhecer o assunto, ser capaz de problematizá-lo. É possível aprender muito sobre a depressão pós-parto assistindo ao filme.

A diretora Emily Atef foi capaz de abordar o avesso da maternidade com sensibilidade, veracidade e humanismo, levando os espectadores a viver os conflitos e emoções que sua personagem vivia, ao enfrentar tal drama. É impossível ser indiferente a ela, deixar de se emocionar com os fatos que se sucedem, de refletir sobre eles. E também compreender o que acontece com todos os outros personagens que entram na história, em especial Julian.

O filme foi exibido na 32ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, em outubro de 2008. Chega agora, em agosto de 2010, quase dois anos depois, às salas de exibição. Espero que chegue também ao DVD e seja visto e debatido por muita gente. É um filme que tem o que dizer, não tem medo de correr riscos e não se pauta pelo gosto do mercado. Corajoso, inovador e muito bem feito.



sexta-feira, 6 de agosto de 2010

A Origem

Tatiana Babadobulos

A Origem (Inception). Estados Unidos, Reino Unido, 2010. Direção e roteiro: Christopher Nolan. Com Leonardo DiCaprio, Ellen Page, Joseph Gordon-Levitt, Ken Watanabe, Cillian Murphy. 148 min.

Jogos psicológicos, quebra-cabeças, ação. Dez anos após “Amnésia” (título em português para “Memento”, de 2000), Christopher Nolan vem com mais um filme que obriga o espectador a prestar atenção a cada detalhe para ir juntando as peças. Se no filme anterior o tema é uma investigação, em “A Origem” (“Inception”) há uma discussão sobre o mundo dos so­nhos.

Na tela, Leonardo DiCaprio é Dom Cobb, um especialista em roubar segredos do subconsciente durante o sono. No entanto, com a investigação corporativa, seu desafio é fazer o inverso: inserir uma ideia na cabeça da pessoa.

Rapidamente (e para não fazer o leitor se perder no labirinto de ideias de Nolan), esta é a narrativa do longa escrito e dirigido por ele, também autor de “Batman – O Ca­valeiro das Trevas”, uma obra-prima, ainda que se trate de uma his­tória baseada em super-herói, mas que ele conseguiu fazer de maneira audaciosa e agradar tanto o público como a crítica.

Embora a história pareça básica, é o modo de filmar que ganha destaque, bem como a montagem de como o filme é apresentado. Ou seja: o modo não-linear novamente entra em ação fazendo as idas e vindas no tempo, além de mesclar o imaginário com o real. Durante duas horas e meia, Nolan brinca com o sonho e com a realidade, insere so­nho dentro de sonho. E, para cola­borar com a loucura do especialista e de seu contratante, o empresário japonês (Ken Watanabe), entram em ação uma arquiteta (Ellen Page), res­ponsável por desenhar os sonhos e deixá-los, de certo modo, arrumados demais; a ex-mulher de Cobb (Ma­rion Cotillard, ótima!); o professor e sogro do protagonista (Michael Caine); seu parceiro (Joseph Gordon-Levitt, de “500 Dias Com Ela”), responsável pelos detalhes técnicos, juntamente com o falsário (Tom Hardy); o alvo, ou seja, o rapaz que terá sua mente vasculhada (Cillan Murphy).

E com a premissa de que é possível fabricar sonhos (e para isso o protagonista prova que já fez antes), as cenas vão se misturando. No meio do thriller ainda há um melodrama, que mistura o romance do protagonista com a esposa, mas até que se justifica no contexto.

O filme não para. O thriller finaliza um acontecimento e, depois do clímax, já tem outro desenvolvimento para instigar ainda mais o espectador. Além das cenas de ação, a fita explora o lado psicológico das personagens, fazendo-as bem cons­truídas, de modo que o espectador se importe e torça por elas.

Assim como em “Batman”, em “A Origem” tudo é superlativo. Além de filmagens em estúdio, a fita se passa em locações no Marrocos, no Canadá, no Japão, na França, nos Estados Unidos. A cena dos prédios concebidos por Georges-Eugène Haussmann, em Paris, sendo virados ao contrário, é incrível.

Para completar, a trilha sonora tem a assinatura de Hans Zimmer (“Sherlock Holmes”), que escalou a guitarra tocada por Johnny Marr, do The Smiths, e Edith Piaf, que entra toda vez que alguém vai sonhar.

Da junção de roteiro inte­li­gente com direção precisa, mon­tagem ágil, efeitos especiais no ponto, elenco perfeito, tri­lha envolvente não pode restar dúvida de que se trata, sim, de um dos melhores filmes de todos os tempos.

As bilheterias norte-americanas confirmam: “A Origem” fechou o terceiro final de semana seguido em pri­meiro lugar desde a sua estreia e já soma US$ 193,4 milhões de arre­cadação. Aos mais detalhistas, a fita, que será lançada nesta sexta-feira, 6 de agosto, poderá ser vista também na versão Imax, que é, inclusive, o modo como eu vi (não confunda com 3D). Vale a pena disputar um ingresso na única sala com tela gigante, cristalina e som de primeira que temos em São Paulo, no Shopping Bourbon Pompéia.

domingo, 1 de agosto de 2010

MEDOS PRIVADOS EM LUGARES PÚBLICOS


Antonio Carlos Egypto

MEDOS PRIVADOS EM LUGARES PÚBLICOS (Coeurs). França, 2006. Direção: Alain Resnais. Com Sabine Azéma, Lambert Wilson, Laura Morante, Pierre Arditi, Isabelle Carré e André Dussollier. 120 min.

Completa três anos ininterruptos em cartaz, no cine Belas Artes, em São Paulo, o filme de Alain Resnais, “Medos Privados em Lugares Públicos”. Uma sessão diária mantém o interesse de um público que valoriza filmes que tratam de relacionamentos humanos com sensibilidade, inteligência e talento cinematográfico. A chancela do grande diretor certamente é um atestado de qualidade. Mas a esta altura o próprio recorde de permanência em cartaz deve atrair pessoas interessadas em saber qual a razão de tal longevidade.

Segundo André Sturm, da distribuidora Pandora e sócio do Belas Artes, em matéria da Folha de São Paulo de 14 de julho de 2010, o filme não estaria em cartaz se não houvesse público e lembra que na sessão do feriado de 09 de julho em São Paulo havia 40 pessoas na sala. Um filme de arte que alcança esse resultado é mesmo uma façanha.

O título do original francês “Coeurs” (Corações) diz tudo, já que é de emoções, afetividade e busca de um amor, que trata o filme. Mas também de inibições, timidez, vergonha, desconforto, jeitos desajeitados de abordar os outros, enfim, dos medos que embasam a solidão humana.

Numa Paris onde neva o tempo todo, os corações ávidos de amor gelam. Os casacos estão sempre cobertos de branco e os flocos de neve caindo separam as cenas em que os personagens entram e saem, em cuja trama uns acabarão envolvidos com os outros, cada qual vivendo suas próprias frustrações e desventuras. Sofrido, mas profundamente humano.

Um homem e uma mulher convivem diariamente numa imobiliária, interessados um no outro, sem se conhecerem realmente. E quando tentam fazê-lo parece existir uma muralha intransponível. O discurso religioso se sobrepõe ao desejo, formalizando as relações e esfriando o contato. Mas deus e o diabo convivem na mesma fita, são faces de uma única moeda. Os seres humanos são complexos e contraditórios.

O casal que busca apartamento para alugar vive um descompasso pela expectativa dela e paralisia dele, que só encontra saída nas conversas com o barman e na bebida interminável. O barman, por sua vez, cuida de um pai absolutamente intratável, testemunha a busca de parceiros por meio de encontros anônimos, muitos sujeitos a desencontros, e a teia de personagens vai costurando relações humanas marcadas pela solidão. Os diálogos, muitas vezes incompletos, incluem as hesitações dos personagens. É uma forma muito concreta de revelar, por meio do cinema, o que pertence ao mundo interno das pessoas.

O elenco tem excelentes atores e atrizes em performances muito convincentes, marcadas por detalhes e sutilezas de cada uma das personalidades envolvidas na trama. É, sem dúvida, um grande filme de um mestre do cinema, um dos maiores. Basta lembrar de “O Ano Passado em Marienbad” e “Hiroshima, Meu Amor”. Eu destacaria, ainda, “Ervas Daninhas”, de 2009, um registro mais leve, mas não menos profundo do que este “Coeurs”.

Para quem ainda não viu e está em São Paulo, é só conferir numa sessão diária, no Belas Artes, e aumentar ainda mais o recorde de permanência em cartaz do filme. Para quem está fora de São Paulo ou não puder ir ao cinema no horário da sessão, ainda que seja sábado ou domingo, resta o DVD, lançado pela Imagem Filmes. Tive o maior prazer em rever o filme e penso voltar a ele outras vezes, no futuro. É uma obra de arte.