quarta-feira, 31 de março de 2010
Os EUA x John Lennon
Tatianna Babadobulos
Os EUA x John Lennon (The U.S. vc. John Lennon). Estados Unidos, 2006. Direção: David Leaf e John Scheinfeld. 95 min.
Documentários não são o forte das salas de exibição no Brasil, por exemplo. Talvez este seja apenas um dos motivos pelos quais o longa-metragem Os EUA x John Lennon chega apenas agora, dia 2 de abril, aos cinemas de São Paulo e do Rio de Janeiro, após ser exibido na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo de 2006, justamente o ano de produção do filme.
A fita é uma verdadeira retrospectiva da história do ex-Beatle John Lennon e sua luta pela paz nos Estados Unidos, em plena Guerra do Vietnã. O documentário conta uma história paralela àquele país, mostrando a luta pelos direitos civis, a decepção com o governo Nixon, o memorável caso Watergate.
Durante o filme, o espectador poderá conhecer algo mais que aquele membro dos Beatles (ao lado de Paul McCartney, Ringo Starr e George Harrison) fazia fora dos palcos, e que ele não era apenas um dos precursores do “iê-iê-iê”. Sua banda de rock continua fazendo sucesso e é uma das mais famosas do mundo, mesmo que tenha acabado nos anos 1970. Na tela, ele surge como uma pessoa de princípios, um jovem carismático que se recusa a ficar calado frente às injustiças.
A contra partida é quando retrata o governo dos Estados Unidos, representado por Richard Nixon (impossível não se lembrar de George W. Bush), e a perseguição por conta de seu visto americano até a obtenção do green card, uma vez que John Lennon era inglês. Isso porque o governo tentou silenciá-lo e expulsá-lo do país.
Dirigido por David Leaf e John Scheinfeld, o documentário mostra imagens políticas e ativistas daqueles anos (1966/ 1976) e depoimentos atuais, entre outros, de Yoko Ono, a viúva do músico, que apresenta ainda mais seu engajamento. “De todos os documentários já feitos sobre John Lennon, este é o que ele amaria”, disse ela.
A trilha sonora, como não podia deixar de ser, é repleta das suas músicas, um verdadeiro deleite para os amantes da bandas. A ênfase fica a cargo de “All we are saying is give peace a chance”, trecho da canção “Give peace a chance”.
Com direção e roteiros impecáveis, o filme merece ser visto e respeitado, principalmente pela pesquisa de imagens, edição bem feita e história do nosso tempo.
domingo, 28 de março de 2010
TULPAN
Antonio Carlos Egypto
TULPAN (Tulpan). Cazaquistão, 2008. Direção: Sergey Dvortsevoy. Com Askhat Kuchinchirekov, Samal Yeslyamova, Ondasyn Besikbasov, Tulepbergen Baisakalov. 100 min.
Um jovem, Asa, após o serviço militar na Marinha, volta à sua região rural do Cazaquistão, onde vive sua família. A irmã e o marido são pastores de ovelhas em vida nômade nas estepes da região e ele se sente atraído por essa vida. Porém, para viver como eles, Asa precisa se casar. E nesse universo rural as mulheres são mais raras do que as ovelhas. O que fazer, quando a única pretendente possível não quer saber do nosso personagem, porque ele tem orelhas grandes demais?
Com essa história singela e ingênua se desenvolve um belo filme, que faz da sua simplicidade o seu maior mérito. Nas planícies do Cazaquistão pós-soviético, tudo parece tão diferente de quem está nas grandes cidades: a paisagem é árida, os espaços, enormes, por onde circulam poucas pessoas, os tempos são lentos, não há atração ou diversões, a comunicação é escassa, os animais estão tão próximos que é com eles que se dá a maior convivência.
O filme “Tulpan”, porém, nos leva a viver este mundo com tal delicadeza e respeito aos sentimentos que sua humanidade salta aos olhos e conseguimos fazer empatia com os personagens e sua vida tão distante da nossa, ao menos aparentemente.
A beleza árida da região e da fotografia que a capta em “Tulpan”, as cenas passadas num tempo que nos permite ver detalhes, curtir falas, movimentos, reações e expressões, fazem dessa experiência cinematográfica um momento de puro prazer. Desde que sejamos capazes de deixar de lado, ao menos por alguns instantes, a agitação, a correria e a expectativa criadas pelo ritmo hollywoodiano de fazer cinema.
A cena do parto da ovelha, mostrada em todos os detalhes do seu real acontecimento, é o ponto alto do filme.
A produção do filme é modesta e a simplicidade, a sua grande arma. Mesmo assim, essa produção contou com apoio financeiro alemão, suíço, russo e polonês. Cinema é caro de se fazer. Valeu a pena. “Tulpan” conquistou o prêmio “Um certo olhar”, no Festival de Cannes, em 2008, e encantou o público paulistano que viu suas primeiras exibições na 32ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Quase dois anos depois, finalmente chega aos cinemas e depois deve sair em DVD.
Um jovem, Asa, após o serviço militar na Marinha, volta à sua região rural do Cazaquistão, onde vive sua família. A irmã e o marido são pastores de ovelhas em vida nômade nas estepes da região e ele se sente atraído por essa vida. Porém, para viver como eles, Asa precisa se casar. E nesse universo rural as mulheres são mais raras do que as ovelhas. O que fazer, quando a única pretendente possível não quer saber do nosso personagem, porque ele tem orelhas grandes demais?
Com essa história singela e ingênua se desenvolve um belo filme, que faz da sua simplicidade o seu maior mérito. Nas planícies do Cazaquistão pós-soviético, tudo parece tão diferente de quem está nas grandes cidades: a paisagem é árida, os espaços, enormes, por onde circulam poucas pessoas, os tempos são lentos, não há atração ou diversões, a comunicação é escassa, os animais estão tão próximos que é com eles que se dá a maior convivência.
O filme “Tulpan”, porém, nos leva a viver este mundo com tal delicadeza e respeito aos sentimentos que sua humanidade salta aos olhos e conseguimos fazer empatia com os personagens e sua vida tão distante da nossa, ao menos aparentemente.
A beleza árida da região e da fotografia que a capta em “Tulpan”, as cenas passadas num tempo que nos permite ver detalhes, curtir falas, movimentos, reações e expressões, fazem dessa experiência cinematográfica um momento de puro prazer. Desde que sejamos capazes de deixar de lado, ao menos por alguns instantes, a agitação, a correria e a expectativa criadas pelo ritmo hollywoodiano de fazer cinema.
A cena do parto da ovelha, mostrada em todos os detalhes do seu real acontecimento, é o ponto alto do filme.
A produção do filme é modesta e a simplicidade, a sua grande arma. Mesmo assim, essa produção contou com apoio financeiro alemão, suíço, russo e polonês. Cinema é caro de se fazer. Valeu a pena. “Tulpan” conquistou o prêmio “Um certo olhar”, no Festival de Cannes, em 2008, e encantou o público paulistano que viu suas primeiras exibições na 32ª. Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Quase dois anos depois, finalmente chega aos cinemas e depois deve sair em DVD.
quinta-feira, 25 de março de 2010
DIÁRIO PERDIDO
Antonio Carlos Egypto
DIÁRIO PERDIDO (Mères et filles). França, 2009. Direção: Julie Lopes Curval. Com Marina Hands, Marie-Josée Croze, Catherine Deneuve e Michel Duchaussoy. 105 min.
Audrey (Marina Hands) é uma mulher na faixa dos 30 anos de idade, está grávida e em conflito com a perspectiva da maternidade. Ela vive em Toronto, no Canadá, e tem uma vida profissional ativa, distante dos pais, que continuam vivendo no interior da França, onde ela nasceu. A relação de Audrey com sua mãe, Martine (Catherine Deneuve), médica conceituada na pequena cidade, é fria, distante, marcada por agressividades mal-disfarçadas.
Quando resolve passar alguns dias com os pais, Audrey se instala na casa ao lado deles, onde viveram seus avós. O avô já falecera há algum tempo, mas a casa permanece desocupada, com todos os móveis e pertences.
Do passado, resta uma chaga: a avó, Louise (Marie-Josée Croze), abandonou a casa e os filhos e nunca mais deu notícias. Até então, era uma mulher bonita, vistosa, sempre bem vestida, com uma casa impecável, mas um tanto insatisfeita com a dependência que cabia às mulheres daquela época. Ansiava por maior autonomia e liberdade, embora tivesse sempre se submetido às decisões do marido, até porque não havia escolha.
Quem teria sido realmente essa avó, como ela vivia e o que poderia ter determinado o sucedido vem à tona tantos anos depois, porque Audrey (por conta da gravidez?) se conecta fortemente a esse passado. Vivendo na casa, ela “vê” sua avó em ação, como se sente, se comporta e vive naquele mesmo espaço, agora fora de moda e deteriorado, em que ela está neste momento.
Esse jogo entre presente e passado no mesmo local, à beira de uma praia onde parece sempre fazer frio e na residência orgulho de uma dona de casa de classe média alta até os anos de 1960, é muito bem realizado. A transição entre o hoje, vivido pela protagonista, e o imaginado por ela, onde quem domina a cena é a avó Louise, é muito eficaz. A beleza da casa, que hoje se vê velha, é perfeita. A direção de arte é impecável e a gente se sente vivendo nos dois tempos marcados por grande diferença de significado na vida das mulheres daquela família.
Na realidade, são três tempos, ou gerações. Da avó Louise, presa em gaiola de ouro, sem poder alçar voo, passando pela filha Martine, que já consegue se realizar como médica na pequena cidade, à neta Audrey, com vida profissional intensa e agitada, em outro país.
Como conceber a vinda de uma possível filha para Audrey? O que estaria reservado a ela? E como ser mãe nesse mundo tão profissionalizado e globalizado? O aborto é cogitado, assim como um casamento em que já não há mais qualquer glamour, ou amor. Imaturidade e despreparo, sim. Descrença na instituição familiar, também.
Com tudo isso, a diretora Julie Lopes Curval vai tecendo uma história das relações de gênero e do avanço das mulheres na conquista da liberdade. A relação entre mães e filhas vai constatando com tranquilidade os caminhos que se abrem, sem deixar de mostrar os conflitos e os custos, por vezes muito altos, dessas conquistas. Por aí se destaca como um filme muito competente para tratar das relações de gênero nos contextos doméstico e público, embora não chegue a tratar da questão do poder mais diretamente.
O diário perdido (ou escondido) dos títulos em português e em inglês é o meio pelo qual Audrey faz sua conexão com o passado da avó Louise. “Mães e filhas” é o título original, que é por onde as relações se estabelecem, construindo novas realidades para a mulher na sociedade.
Um problema a apontar no filme é: quem narra a história? Para deslindar fatos, é preciso ter dados, o que a protagonista colhe tanto no diário da avó como junto às pessoas que com ela conviveram: o pai, o tio, a vizinha, os comerciantes locais e Martine, ainda que esta a contragosto. A partir daí, Audrey levanta suas hipóteses e tira conclusões. Perfeito. Mas algumas cenas do passado, especialmente a do avô se interpondo à avó na cozinha, o que explica a existência do diário e do dinheiro descobertos por Audrey, não tem origem ou explicação. Ela não tem de onde tirar essa conclusão, pode apenas imaginá-la, supô-la. Mas não é assim que a cena aparece no filme. É como uma “verdade” que acaba esclarecendo tudo. Remete-nos, portanto, ao narrador onisciente do cinema clássico: Deus. Quem mais poderia ser?
A “solução” de Audrey morar na casa dos avós por um par de dias é muito vantajosa para o roteiro, mas pouco provável no contexto. Só que, sem ela, o filme não seria possível. A compra de equipamentos de cozinha, como um lava-louças, para tão pouco uso, mesmo vinculado à profissão da protagonista e a seus brinquedos infantis, também só se justifica para que a história possa caminhar. Já a profissão de médica que Martine exerce, enquanto uma gravidez decorre sem ser explicitada, é perfeita para revelar os meandros das relações mãe e filha.
O universo feminino em mutação, aqui tão bem retratado, compensa eventuais falhas e a presença luminosa de Catherine Deneuve no elenco é a cereja do bolo.
DIÁRIO PERDIDO (Mères et filles). França, 2009. Direção: Julie Lopes Curval. Com Marina Hands, Marie-Josée Croze, Catherine Deneuve e Michel Duchaussoy. 105 min.
Audrey (Marina Hands) é uma mulher na faixa dos 30 anos de idade, está grávida e em conflito com a perspectiva da maternidade. Ela vive em Toronto, no Canadá, e tem uma vida profissional ativa, distante dos pais, que continuam vivendo no interior da França, onde ela nasceu. A relação de Audrey com sua mãe, Martine (Catherine Deneuve), médica conceituada na pequena cidade, é fria, distante, marcada por agressividades mal-disfarçadas.
Quando resolve passar alguns dias com os pais, Audrey se instala na casa ao lado deles, onde viveram seus avós. O avô já falecera há algum tempo, mas a casa permanece desocupada, com todos os móveis e pertences.
Do passado, resta uma chaga: a avó, Louise (Marie-Josée Croze), abandonou a casa e os filhos e nunca mais deu notícias. Até então, era uma mulher bonita, vistosa, sempre bem vestida, com uma casa impecável, mas um tanto insatisfeita com a dependência que cabia às mulheres daquela época. Ansiava por maior autonomia e liberdade, embora tivesse sempre se submetido às decisões do marido, até porque não havia escolha.
Quem teria sido realmente essa avó, como ela vivia e o que poderia ter determinado o sucedido vem à tona tantos anos depois, porque Audrey (por conta da gravidez?) se conecta fortemente a esse passado. Vivendo na casa, ela “vê” sua avó em ação, como se sente, se comporta e vive naquele mesmo espaço, agora fora de moda e deteriorado, em que ela está neste momento.
Esse jogo entre presente e passado no mesmo local, à beira de uma praia onde parece sempre fazer frio e na residência orgulho de uma dona de casa de classe média alta até os anos de 1960, é muito bem realizado. A transição entre o hoje, vivido pela protagonista, e o imaginado por ela, onde quem domina a cena é a avó Louise, é muito eficaz. A beleza da casa, que hoje se vê velha, é perfeita. A direção de arte é impecável e a gente se sente vivendo nos dois tempos marcados por grande diferença de significado na vida das mulheres daquela família.
Na realidade, são três tempos, ou gerações. Da avó Louise, presa em gaiola de ouro, sem poder alçar voo, passando pela filha Martine, que já consegue se realizar como médica na pequena cidade, à neta Audrey, com vida profissional intensa e agitada, em outro país.
Como conceber a vinda de uma possível filha para Audrey? O que estaria reservado a ela? E como ser mãe nesse mundo tão profissionalizado e globalizado? O aborto é cogitado, assim como um casamento em que já não há mais qualquer glamour, ou amor. Imaturidade e despreparo, sim. Descrença na instituição familiar, também.
Com tudo isso, a diretora Julie Lopes Curval vai tecendo uma história das relações de gênero e do avanço das mulheres na conquista da liberdade. A relação entre mães e filhas vai constatando com tranquilidade os caminhos que se abrem, sem deixar de mostrar os conflitos e os custos, por vezes muito altos, dessas conquistas. Por aí se destaca como um filme muito competente para tratar das relações de gênero nos contextos doméstico e público, embora não chegue a tratar da questão do poder mais diretamente.
O diário perdido (ou escondido) dos títulos em português e em inglês é o meio pelo qual Audrey faz sua conexão com o passado da avó Louise. “Mães e filhas” é o título original, que é por onde as relações se estabelecem, construindo novas realidades para a mulher na sociedade.
Um problema a apontar no filme é: quem narra a história? Para deslindar fatos, é preciso ter dados, o que a protagonista colhe tanto no diário da avó como junto às pessoas que com ela conviveram: o pai, o tio, a vizinha, os comerciantes locais e Martine, ainda que esta a contragosto. A partir daí, Audrey levanta suas hipóteses e tira conclusões. Perfeito. Mas algumas cenas do passado, especialmente a do avô se interpondo à avó na cozinha, o que explica a existência do diário e do dinheiro descobertos por Audrey, não tem origem ou explicação. Ela não tem de onde tirar essa conclusão, pode apenas imaginá-la, supô-la. Mas não é assim que a cena aparece no filme. É como uma “verdade” que acaba esclarecendo tudo. Remete-nos, portanto, ao narrador onisciente do cinema clássico: Deus. Quem mais poderia ser?
A “solução” de Audrey morar na casa dos avós por um par de dias é muito vantajosa para o roteiro, mas pouco provável no contexto. Só que, sem ela, o filme não seria possível. A compra de equipamentos de cozinha, como um lava-louças, para tão pouco uso, mesmo vinculado à profissão da protagonista e a seus brinquedos infantis, também só se justifica para que a história possa caminhar. Já a profissão de médica que Martine exerce, enquanto uma gravidez decorre sem ser explicitada, é perfeita para revelar os meandros das relações mãe e filha.
O universo feminino em mutação, aqui tão bem retratado, compensa eventuais falhas e a presença luminosa de Catherine Deneuve no elenco é a cereja do bolo.
quarta-feira, 17 de março de 2010
CRIAÇÃO
Antonio Carlos Egypto
CRIAÇÃO (Creation). Inglaterra, 2009. Direção: Jon Amiel. Com Paul Bettany, Jennifer Connely, Jeremy Northam e Toby Jones. 108 min.
Na abertura do filme “Criação”, diz-se que a evolução das espécies, conceito formulado por Darwin, foi a ideia mais original que já existiu. Não me lembro exatamente das palavras utilizadas, mas o sentido é esse.
Pois bem, não há como discordar. É um conceito tão importante quanto o “inconsciente”, de Freud, ou a “mais-valia”, de Marx. E tanto quanto o deles, revolucionou o pensamento humano e a própria ciência.
No ano passado, comemoramos 200 anos do nascimento de Charles Darwin e 150 anos da publicação de “A Origem das Espécies”, razões de sobra para todo o tipo de homenagens: livros, exposições, filmes. Muito oportunas, por sinal, já que, apesar de decorrido todo esse tempo, a ideia da seleção natural vem sendo questionada por conceitos como o criacionismo e o design inteligente de Deus. Isso acaba por fazer do filme “Criação” um produto extremamente atual, embora se trate de uma história passada em meados do século XIX.
Pesquisador rigoroso e meticuloso, Darwin acabou desenvolvendo uma teoria que surpreendeu a ele mesmo. Assim como Freud, ao descobrir o papel da sexualidade desde a tenra infância, suas descobertas afrontavam os conceitos vigentes na sociedade da época e derrubavam valores morais fortemente estabelecidos e protegidos pela religião.
Em “Criação”, é o período anterior à publicação de “A Origem das Espécies”, fruto de vinte anos de pesquisas, o que se focaliza. As hesitações de Darwin (Paul Bettany) em se contrapor a sua mulher Emma (Jennifer Connely), muito religiosa, como seria de se esperar, ao reverendo Innes (Jeremy Northam), seu amigo, e à igreja anglicana, que o próprio cientista frequentava até então, representam a batalha que haveria de acontecer entre as descobertas científicas e a moral e a religião da época. Entre a ciência e Deus. Ou, pelo menos, contestando princípios fortemente atribuídos a Deus.
Não é lícito questionar a harmonia da natureza, uma criação de Deus, como ele fazia. E como entender o ser humano como fruto de uma evolução de espécies, se ele foi criado à imagem e semelhança de Deus? Deus sabe o que faz e não cabe ao ser humano tentar entender os seus desígnios, está além da nossa capacidade. E quem gosta de saber que descende de algum tipo de macaco?
A coisa era tão nova e revolucionária, que 150 anos depois ainda cabe contestação e movimentos organizados para ensinar conceitos que já deveriam ter sido superados desde aquela época. No mundo contemporâneo, não são mais apresentados apenas como conceitos morais ou religiosos, mas pretendem ter uma roupagem de conhecimento científico.
Por aqui mesmo, temos políticos querendo instituir o criacionismo nas escolas, para se contrapor ao evolucionismo. Ou com o argumento de que caberia aos jovens conhecer as duas correntes, para fazerem as suas próprias escolhas. Como se elas se equivalessem e a gente pudesse julgar o conhecimento científico a partir de nossos valores e interesses e não do rigor de sua metodologia, sempre aberta a todo tipo de experimento ou pesquisa que a conteste ou supere.
“Criação”, ao contrário da ciência de Charles Darwin, não é um filme revolucionário ou inovador. Mas é didático, ao explicitar, ao longo da narrativa, o conflito interno do cientista e suas relações familiares, com destaque para a dor da perda da filha, com quem estabelece contato permanente em sua mente, e que o impulsiona a agir. Por meio de poucos personagens, a trama consegue expor o que estava em jogo na sociedade da época.
Ficaram de fora as viagens e aventuras de Darwin, essenciais para a compreensão de sua teoria. Isso é citado, mas não explorado. Restam as pesquisas com os pombos, realizadas ali mesmo, na propriedade rural onde ele residia. Na minha opinião, o personagem Darwin poderia render muito mais do que isso. Em todo caso, não há nada que desabone “Criação”, a não ser um certo academicismo.
CRIAÇÃO (Creation). Inglaterra, 2009. Direção: Jon Amiel. Com Paul Bettany, Jennifer Connely, Jeremy Northam e Toby Jones. 108 min.
Na abertura do filme “Criação”, diz-se que a evolução das espécies, conceito formulado por Darwin, foi a ideia mais original que já existiu. Não me lembro exatamente das palavras utilizadas, mas o sentido é esse.
Pois bem, não há como discordar. É um conceito tão importante quanto o “inconsciente”, de Freud, ou a “mais-valia”, de Marx. E tanto quanto o deles, revolucionou o pensamento humano e a própria ciência.
No ano passado, comemoramos 200 anos do nascimento de Charles Darwin e 150 anos da publicação de “A Origem das Espécies”, razões de sobra para todo o tipo de homenagens: livros, exposições, filmes. Muito oportunas, por sinal, já que, apesar de decorrido todo esse tempo, a ideia da seleção natural vem sendo questionada por conceitos como o criacionismo e o design inteligente de Deus. Isso acaba por fazer do filme “Criação” um produto extremamente atual, embora se trate de uma história passada em meados do século XIX.
Pesquisador rigoroso e meticuloso, Darwin acabou desenvolvendo uma teoria que surpreendeu a ele mesmo. Assim como Freud, ao descobrir o papel da sexualidade desde a tenra infância, suas descobertas afrontavam os conceitos vigentes na sociedade da época e derrubavam valores morais fortemente estabelecidos e protegidos pela religião.
Em “Criação”, é o período anterior à publicação de “A Origem das Espécies”, fruto de vinte anos de pesquisas, o que se focaliza. As hesitações de Darwin (Paul Bettany) em se contrapor a sua mulher Emma (Jennifer Connely), muito religiosa, como seria de se esperar, ao reverendo Innes (Jeremy Northam), seu amigo, e à igreja anglicana, que o próprio cientista frequentava até então, representam a batalha que haveria de acontecer entre as descobertas científicas e a moral e a religião da época. Entre a ciência e Deus. Ou, pelo menos, contestando princípios fortemente atribuídos a Deus.
Não é lícito questionar a harmonia da natureza, uma criação de Deus, como ele fazia. E como entender o ser humano como fruto de uma evolução de espécies, se ele foi criado à imagem e semelhança de Deus? Deus sabe o que faz e não cabe ao ser humano tentar entender os seus desígnios, está além da nossa capacidade. E quem gosta de saber que descende de algum tipo de macaco?
A coisa era tão nova e revolucionária, que 150 anos depois ainda cabe contestação e movimentos organizados para ensinar conceitos que já deveriam ter sido superados desde aquela época. No mundo contemporâneo, não são mais apresentados apenas como conceitos morais ou religiosos, mas pretendem ter uma roupagem de conhecimento científico.
Por aqui mesmo, temos políticos querendo instituir o criacionismo nas escolas, para se contrapor ao evolucionismo. Ou com o argumento de que caberia aos jovens conhecer as duas correntes, para fazerem as suas próprias escolhas. Como se elas se equivalessem e a gente pudesse julgar o conhecimento científico a partir de nossos valores e interesses e não do rigor de sua metodologia, sempre aberta a todo tipo de experimento ou pesquisa que a conteste ou supere.
“Criação”, ao contrário da ciência de Charles Darwin, não é um filme revolucionário ou inovador. Mas é didático, ao explicitar, ao longo da narrativa, o conflito interno do cientista e suas relações familiares, com destaque para a dor da perda da filha, com quem estabelece contato permanente em sua mente, e que o impulsiona a agir. Por meio de poucos personagens, a trama consegue expor o que estava em jogo na sociedade da época.
Ficaram de fora as viagens e aventuras de Darwin, essenciais para a compreensão de sua teoria. Isso é citado, mas não explorado. Restam as pesquisas com os pombos, realizadas ali mesmo, na propriedade rural onde ele residia. Na minha opinião, o personagem Darwin poderia render muito mais do que isso. Em todo caso, não há nada que desabone “Criação”, a não ser um certo academicismo.
sexta-feira, 12 de março de 2010
Ilha do Medo
Tatiana Babadobulos
Martin Scorsese, em mais uma parceria com Leonardo DiCaprio no papel principal, tal como aconteceu em “Gangues de Nova York”, “O Aviador”, “Os Infiltrados”, traz às telas o suspense “Ilha do Medo” (“Shutter Island”).
O longa-metragem conta a história do agente Teddy Daniels (DiCaprio) que, ao lado do parceiro Chuck Aule (Mark Ruffalo, de “Ensaio Sobre a Cegueira”), vai tentar desvendar o mistério sobre o desaparecimento de uma mulher em Shutter Island, um local onde funciona um hospital psiquiátrico (e onde estão detidos pacientes considerados perigosos pela justiça).
No auge da Guerra Fria, nos anos 1950, os dois agentes da polícia federal terão de enfrentar problemas maiores do que estava imaginando.
Adotando o estilo noir, com cenas sombrias e com protagonistas que vivem em um mundo cínico, o filme é cheio de jogos psicológicos que vão deixando o espectador cada vez mais em dúvida sobre onde se quer chegar ao final da história. O clima de suspense, digno de Alfred Hitchcock (o clássico “Vertigo”?) vai aumentado ainda mais com a música incidental.
No hospital, onde os policiais ficarão alguns dias até encontrar a pessoa que fugiu, há pessoas igualmente assustadoras, que cometeram crimes e estão em fase de tratamento e cumprindo pena.
As cenas se passam na ilha, sempre acompanhada de mau tempo, com tempestades, ventos, chuva; ou dentro do hospital, com cenas escuras, pacientes estranhos e os próprios agentes da polícia criando problemas, suspense, intriga entre os médicos, como com doutor Cawley (Ben Kingsley) e outros pacientes.
Em flashback, Teddy (cuja interpretação de DiCaprio é bastante convincente, principalmente por conta da ansiedade e da esquizofrenia) vai lidando, ao mesmo tempo, com o seu passado, com sua esposa, Dolores (Michelle Williams), e o que aconteceu de lá pra cá. São alucinações, paranoias que vão surgindo aos poucos e aumentando o suspense.
Baseado no livro de Dennis Lehane (“Paciente 67”), “Ilha do Medo” é altamente provocador, que o tempo inteiro faz um jogo e deixa o espectador atento às mudanças de comportamento dos personagens, suas atitudes, e o faz imaginar o que está acontecendo, podendo torcer ora para o médico, ora para o paciente.
Ao final, muitos vão se perguntar como não notaram, nas sutilezas das cenas, os indícios sobre o desfecho. Sob a batuta do mestre Scorsese (especialista em blockbuster, mas que ultimamente tem se contentado com filme que não seja o típico arrasa-quarteirão, o que não é sinônimo de má qualidade, que fique claro), “Ilha do Medo” é uma excelente produção, um filme de gênero que reúne elenco de primeira linha, acompanhado de figurino de época para situar o tempo, efeitos especiais para criar o clima tenso, bom roteiro e, voilà, direção impecável.
Martin Scorsese, em mais uma parceria com Leonardo DiCaprio no papel principal, tal como aconteceu em “Gangues de Nova York”, “O Aviador”, “Os Infiltrados”, traz às telas o suspense “Ilha do Medo” (“Shutter Island”).
O longa-metragem conta a história do agente Teddy Daniels (DiCaprio) que, ao lado do parceiro Chuck Aule (Mark Ruffalo, de “Ensaio Sobre a Cegueira”), vai tentar desvendar o mistério sobre o desaparecimento de uma mulher em Shutter Island, um local onde funciona um hospital psiquiátrico (e onde estão detidos pacientes considerados perigosos pela justiça).
No auge da Guerra Fria, nos anos 1950, os dois agentes da polícia federal terão de enfrentar problemas maiores do que estava imaginando.
Adotando o estilo noir, com cenas sombrias e com protagonistas que vivem em um mundo cínico, o filme é cheio de jogos psicológicos que vão deixando o espectador cada vez mais em dúvida sobre onde se quer chegar ao final da história. O clima de suspense, digno de Alfred Hitchcock (o clássico “Vertigo”?) vai aumentado ainda mais com a música incidental.
No hospital, onde os policiais ficarão alguns dias até encontrar a pessoa que fugiu, há pessoas igualmente assustadoras, que cometeram crimes e estão em fase de tratamento e cumprindo pena.
As cenas se passam na ilha, sempre acompanhada de mau tempo, com tempestades, ventos, chuva; ou dentro do hospital, com cenas escuras, pacientes estranhos e os próprios agentes da polícia criando problemas, suspense, intriga entre os médicos, como com doutor Cawley (Ben Kingsley) e outros pacientes.
Em flashback, Teddy (cuja interpretação de DiCaprio é bastante convincente, principalmente por conta da ansiedade e da esquizofrenia) vai lidando, ao mesmo tempo, com o seu passado, com sua esposa, Dolores (Michelle Williams), e o que aconteceu de lá pra cá. São alucinações, paranoias que vão surgindo aos poucos e aumentando o suspense.
Baseado no livro de Dennis Lehane (“Paciente 67”), “Ilha do Medo” é altamente provocador, que o tempo inteiro faz um jogo e deixa o espectador atento às mudanças de comportamento dos personagens, suas atitudes, e o faz imaginar o que está acontecendo, podendo torcer ora para o médico, ora para o paciente.
Ao final, muitos vão se perguntar como não notaram, nas sutilezas das cenas, os indícios sobre o desfecho. Sob a batuta do mestre Scorsese (especialista em blockbuster, mas que ultimamente tem se contentado com filme que não seja o típico arrasa-quarteirão, o que não é sinônimo de má qualidade, que fique claro), “Ilha do Medo” é uma excelente produção, um filme de gênero que reúne elenco de primeira linha, acompanhado de figurino de época para situar o tempo, efeitos especiais para criar o clima tenso, bom roteiro e, voilà, direção impecável.
domingo, 7 de março de 2010
Simplesmente Complicado
Tatiana Babadobulos
É um verdadeiro clichê falar que Meryl Streep é a atriz que segura o filme, seja ele qual for. Mas uma coisa também é certa: é tudo verdade.
Recentemente, ela fez o papel de Julia, uma norte-americana que se mudou para Paris por conta do trabalho do marido, e aprendeu as delícias da culinária francesa no filme "Julia & Julie". "Mamma Mia!", musical baseado na obra da banda ABBA, só vale a pena por sua atuação. Agora, ela estrela a comédia romântica "Simplesmente Complicado" ("It's Complicated"),
Na fita, ela é Jane Adler, dona de um restaurante que, após 10 anos de seu divórcio, tem uma boa relação com o ex-marido, Jake (Alec Baldwin), pai de seus três filhos. Um deles, aliás, se forma e é por conta desta celebração que a família se une.
Há também o namorado (John Krasinski) de uma das filhas que tem um desempenho bastante interessante na trama, pois adotou a família da namorada como sua, e é capaz de guardar segredo sobre uma descoberta, ainda que seja sem querer.
Na primeira meia hora do filme já dá para saber como será a história contada pela diretora e também roteirista Nancy Meyers (de "O Amor Não Tira Férias"). Isso porque os elementos que ela une neste trecho da fita vão mostrando ao espectador o que será o desenrolar da história nada simples, porém bastante comum no cinema e, vá lá, na vida real. O "complicado" que dá título ao filme é justamente esta situação-clichê "quando eu te amava, você me traía e agora você me quer".
Como está fazendo uma reforma em sua casa, entra em cena o arquiteto de Jane, Adam (Steve Martin), um divorciado que ainda não se recuperou totalmente da desilusão com a ex-esposa, mas já se mostra pronto o suficiente para iniciar mais um romance.
É nítido que Meryl Streep faz um bom trabalho, por exemplo, quando se relaciona com os filhos, com o ex-marido, e até mesmo quando está em seu restaurante preparando um croissant au chocolat. Alec Baldwin tem um jeito canastrão que cai como uma luva para seu personagem, afinal trocou a esposa por outra bem mais nova e agora sente que, da altura de seus quase 50 anos, criar um filho pequeno não é lá muito confortável.
Ainda que Steve Martin seja um bom ator, tem o estigma dos filmes de comédia, uma vez que sempre temos a sensação, nesta produção, que uma hora ou outra ele vai soltar alguma piada, fazer uma gracinha e assim por diante. Seu timing neste momento, entretanto, é perfeito, e as pitadas de humor são bem pontuadas.
"Simplesmente Complicado" discute a vida por volta dos 50 anos, o relacionamento entre pais e filhos, o divórcio, o direito de recomeçar. Mas o ponto negativo é o fato de ser previsível e cansar o espectador, haja vista os momentos de bom humor serem bastante raros.
É um verdadeiro clichê falar que Meryl Streep é a atriz que segura o filme, seja ele qual for. Mas uma coisa também é certa: é tudo verdade.
Recentemente, ela fez o papel de Julia, uma norte-americana que se mudou para Paris por conta do trabalho do marido, e aprendeu as delícias da culinária francesa no filme "Julia & Julie". "Mamma Mia!", musical baseado na obra da banda ABBA, só vale a pena por sua atuação. Agora, ela estrela a comédia romântica "Simplesmente Complicado" ("It's Complicated"),
Na fita, ela é Jane Adler, dona de um restaurante que, após 10 anos de seu divórcio, tem uma boa relação com o ex-marido, Jake (Alec Baldwin), pai de seus três filhos. Um deles, aliás, se forma e é por conta desta celebração que a família se une.
Há também o namorado (John Krasinski) de uma das filhas que tem um desempenho bastante interessante na trama, pois adotou a família da namorada como sua, e é capaz de guardar segredo sobre uma descoberta, ainda que seja sem querer.
Na primeira meia hora do filme já dá para saber como será a história contada pela diretora e também roteirista Nancy Meyers (de "O Amor Não Tira Férias"). Isso porque os elementos que ela une neste trecho da fita vão mostrando ao espectador o que será o desenrolar da história nada simples, porém bastante comum no cinema e, vá lá, na vida real. O "complicado" que dá título ao filme é justamente esta situação-clichê "quando eu te amava, você me traía e agora você me quer".
Como está fazendo uma reforma em sua casa, entra em cena o arquiteto de Jane, Adam (Steve Martin), um divorciado que ainda não se recuperou totalmente da desilusão com a ex-esposa, mas já se mostra pronto o suficiente para iniciar mais um romance.
É nítido que Meryl Streep faz um bom trabalho, por exemplo, quando se relaciona com os filhos, com o ex-marido, e até mesmo quando está em seu restaurante preparando um croissant au chocolat. Alec Baldwin tem um jeito canastrão que cai como uma luva para seu personagem, afinal trocou a esposa por outra bem mais nova e agora sente que, da altura de seus quase 50 anos, criar um filho pequeno não é lá muito confortável.
Ainda que Steve Martin seja um bom ator, tem o estigma dos filmes de comédia, uma vez que sempre temos a sensação, nesta produção, que uma hora ou outra ele vai soltar alguma piada, fazer uma gracinha e assim por diante. Seu timing neste momento, entretanto, é perfeito, e as pitadas de humor são bem pontuadas.
"Simplesmente Complicado" discute a vida por volta dos 50 anos, o relacionamento entre pais e filhos, o divórcio, o direito de recomeçar. Mas o ponto negativo é o fato de ser previsível e cansar o espectador, haja vista os momentos de bom humor serem bastante raros.
sexta-feira, 5 de março de 2010
DIREITO DE AMAR
Antonio Carlos Egypto
DIREITO DE AMAR (A Single Man). Estados Unidos, 2009. Direção: Tom Ford. Com Colin Firth, Julianne Moore, Mathew Goode e Nicholas Hoult. 101 min.
O que poderia levar um respeitado professor universitário de Los Angeles, com bom padrão de vida, a planejar meticulosamente um suicídio? A perda trágica do ser amado num acidente automobilístico, após 16 anos de vida em comum?
Há outros elementos em jogo. Essa duradoura história de amor que ele viveu foi com um jovem militar, ambos mantendo suas carreiras, na expressão consagrada por Oscar Wilde do “amor que não ousa dizer seu nome”. Tanto é assim, que a família do jovem Jim (Mathew Goode) interdita a presença do professor nas cerimônias fúnebres do amado. Por pouco, ele nem seria informado do acidente fatal, ocorrido em outro estado dos Estados Unidos.
Vivemos o início dos anos 1960, com a revolução sexual já em andamento, após o advento da pílula anticoncepcional, que abriu espaço para a liberdade feminina e abalou estruturas conservadoras, como o sexo direcionado ao casamento monogâmico e eterno. Mas, se a submissão sexual da mulher começa a implodir, a questão do desejo homossexual ainda precisará de muito mais tempo para ser assimilada. O filme mostra, no entanto, que a prostituição masculina homossexual se expressa sem maiores dificuldades.
Quanto ao personagem do jovem aluno Kenny (Nicholas Hoult), que se aproxima do professor Falconer (Colin Firth), ele representará as mudanças que estão a caminho. É impressionante como o jovem consegue captar tudo o que está acontecendo com o professor: ele não põe conceitos ou barreiras que o impeçam de enxergar a realidade do outro. Suas ações são também simples e diretas, não passam por avaliações ou constrangimentos de ordem moral. Já é possível fazer isso. Sinal inequívoco de uma evolução na compreensão dos sentimentos e ações humanos que, na verdade, ainda não conquistamos. Pelo menos, não plenamente.
Mas “Direito de Amar”, ao mostrar a crise do professor Falconer diante de sua perda, remete a quase vinte anos antes, quando a possibilidade dessa compreensão simplesmente não estava inserida no tecido social. Como era de costume, se podia fazer, mas nunca expressar uma sexualidade fora do padrão esperado. As infidelidades conjugais, por exemplo, permaneciam secretas. Gastos com uma segunda família, casas de amantes, filhos fora do casamento, “garçonières” e prostitutas eram a regra.
Famílias homossexuais, incluindo a possibilidade de filhos adotivos, eram algo impensável. Simplesmente não podia existir. Hoje, quando a gente ouve autoridades, como as do Irã, dizerem que não existem homossexuais no país, nós já entendemos muito bem a opressão que os alcança e a farsa que se estabelece quanto ao assunto. Não era muito diferente disso o que se dizia e se praticava em países ocidentais, como os Estados Unidos e o nosso Brasil, algumas décadas atrás. Felizmente, as coisas mudam, moralismos vão sendo superados, e novas possibilidades se estabelecem.
“Direito de Amar” discute o tema com sensibilidade e sem a dramaticidade trágica que tantas vezes acompanha o tema da homossexualidade no cinema. Na trama, a resolução das situações vai se dando de forma às vezes simples, outras vezes, fortuitas, ou simplesmente inesperadas. O que menos funciona é o que se planeja. Qualquer semelhança com a vida real não terá sido mera coincidência.
O filme tem enquadramentos elegantes e faz um uso estético dos primeiríssimos planos (closes) e dos planos-detalhe muito bom. O desempenho dos atores é ótimo. Julianne Moore faz um pequeno papel, com muita competência, que mostra um aspecto importante da vida do personagem central, e Colin Firth se destaca como protagonista, com uma interpretação premiada cheia de nuances e extremamente convincente do personagem George Falconer.
Tom Ford é um famoso designer de moda, que atua como diretor de cinema pela primeira vez. É uma estreia e tanto!